terça-feira, 9 de junho de 2009

Ela, Arlete

Querida Natalinda,
Essa semana foi a primeira semana que realmente fez frio em sp. É engraçado esse ritual do frio, né? Tirar a meia calça do armário, comprar chazinhos gostosos, colocar a bolsa de água quente na cama pra ficar quentinha - essa aprendi com a Dona Arlete, minha avó. Aliás Nata, vc tinha que ter conhecido a Dona Arlete. Imagina a mãe da minha mãe? Linda de morrer. Quando eu era pequena, uma senhora me parou na rua, em AIURUOCA, cidade dela e disse: "sua avó foi a mulher mais linda das redondezas, não era nem da cidade, era das redondezas, mesmo". Tão linda, que a banda de Aiuruoca fez uma música só pra ela. Eu lembro Nata, direitinho. Da minha avó na janela - BEM estilo Rita do Chico- parada, olhando o povo passar e ouvindo a música dela. Aqueles olhos libaneses e mãos boas pra fazer doce e salgado. Não saía nunca de casa. Com muita insistência, dava uma voltinha na praça, sábado a noite. Mas era uma leoa, a Dona Arlete. Protegia as netas com unhas e dentes - de cachorro bravo, dos meninos cafajestes, das pragas de famílias inimigas, porque vc sabe, né? Cidade pequena é tipo Romeu e Julieta, sempre existem famílias brigadas. Em noites de chuva e "trovoada" mandava desligar tudo da tomada. Medo de dar curto-circuito, é mole? Ficava a família inteira na sala, esperando a chuva passar pra poder assistir o Jornal Nacional. A chave da casa? Só depois dos 18 anos. Eu, como sou a última neta, tive abono e ganhei com 15. Mas as instruções eram bem claras:"Marilia, você entra, dá DUAS voltas na chave e coloca em cima da minha penteadera". E eu, plena flor desabrochando - de férias em Minas, olha o perigo - dizia "Tá bom vó!". Pois nada, fazia direitinho e quando entrava no quarto dela para deixar a chave, ela dizia, acordada: "Vc deu DUAS voltas na chave?". Ah... minha vó. Saudade dela. Que deixava o chá de cidreira da horta, com biscoitinho, em cima do fogão a lenha. Rezava novenas e fazia promessas. Sabe que durante anos, na procissão da semana santa, minha vó foi descalça? Promessa. Se alguém sabe qual? Só Deus. A reza dela era braba mesmo. Quando eu tinha soluço, sabe daqueles que não passa? Ela fazia uma benção com a mão na minha testa e pimba! O soluço ia embora. E quando alguém perdia a carteira em casa, já tinha solução :"Liga pra vovó". E lá de Minas, ela fazia os beregodegos dela e pasme... a carteira aparecia. Ela era leve e cheia de humor. Dormia com uma foto do meu vô pendurada na parede, na linha da cabeça. E quando eu lhe perguntei se ela tinha sido apaixonada por ele, me respondeu sem titubear: "ainda sou, Marilinha". Ele tbm deve ter sido doidinho por ela, Nata. Que foi mãe, avó, esposa, tudo. Que mesmo sendo católica fervorosa, BATEU com um pão, no Padre da cidade - porque ele tinha dito que meu tio era comunista para os militares. Acha que é brincadeira? Não, não é não. Não se pode brincar com uma Dantas Motta. As suas receitas? Ninguém sabe onde foram parar. Ela escondeu - estão juntos com seus segredos.
Tudo isso, Nata, porque faz frio aqui. E vc sabe, o frio daqui não é como o daí. Não tem charme, nem bufandas, nem capuccino. Acho que me deu saudade de Aiuruoca. De cheirinho de mato fresco. E de vc, sempre né? Que é minha amiga mais querida.
Lobby, Mazi

6 comentários:

Uma Ju disse...

Mazi, que delicia de texto!
Ai, ai... quem é minha amiga mais talentosa?
Ainda bem que você sabe. Se não é apenas dom mesmo, assim naturalmente, dona Arlete must be doing her things. Ebó, reza braba, chamando o santo enfim, botando a maior fé. Eu boto!

Anônimo disse...

ai pequena... que lindo... que delicia imaginar sua vó...
um bjo
mari

Fefolina disse...

Delícia mesmo... E mais ainda é que seu texto me fez lembrar da minha! É isso aí, as pessoas são eternas, nas outras que sentem saudade e relembram.
Love u so much.

Nataly disse...

Ôh Marília! Pode uma coisas dessas?
D. Arlete agora devde estar lá na janela do céu, ouvindo a música dela e cuidando da neta. Vendo se vc continua dando duas voltas na chave, e isso sim... é ela que deve te soprar as ternurinhas da vida terrestre que tanto te inspiram. D. Arlete é avó de filme, já imaginei uma série dessas estilo "O Auto da Compadecida", e as cenas engraçadíssimas, D. Arlete batendo no padre com o pão, escondendo as receitas(daí poderíamos ver onde era o esconderijo, bem engraçado tbm) Vc e sua mãe poderiam se juntar e escrever o roteiro! Porque sua mãe deve lembrar de histórias fantásticas. Eu posso fazer a jovem Arlete, e sim, seria mi estreno! Hahahaha. Quero fazer a cena em que conheço o seu avô. Como foi isso? Marília, vc tbm pode fazer a D. Arlete de jovem, como vai ser uma produção global, eles nos deixam igualzinhas com a maquiagem, ou mudam no computador Hahahah!Quem vai dirigir vai ser o Guel Arrais, isso se for uma coisa mais popular porém tradicional. Se queremos fazer uma Arlete de conto de fadas, chamamos o Luiz Fernando Carvalho. O que acha? Sugiro a Laura Cardoso pra fazer a Arlete terceira fase. Te gusta? E sim, a microsérie se chamará "Arlete". Assim, só o nome dela.
Marilhota flipei né?É que seus textos ispiram querida, D. Arlete deve estar orgulhosa.
Amo vc.

Lu Seleme disse...

que lindo, mazinha!
já entro aqui sabendo que vou sair mais sensível...
fiquei com saudades da sua avó tb.

um beijo

Rastro de Encontro disse...

conheci um pedacinho desses ares dantas mota! e me pus a imaginar em que casinha com roseiras na frente e janelas de batente colorido habitava esta ilustre e suave senhora!