terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Das mazelas de ser panda

Pela maga mestra, Clarice

... e começou o meu calvário de anjo - pois a mulher, com sua voz autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia ser menos comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première e, se não fosse eu, o vestido se estragaria na chuva ou ela se atrasaria e perderia a première. Eu já tivera as minhas premières, e nem as minhas me haviam comovido. “A senhora não sabe o milagre que me aconteceu”, contou-me com firmeza. “Comecei a rezar na rua, a rezar para que Deus me mandasse um anjo que me salvasse, fiz promessa de não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou a senhora.” Constrangida, remexi-me no banco. Eu era um anjo destinado a proteger premières? A ironia divina me encabulava. Mas a senhora, com toda a força de sua fé prática, e tratava-se de mulher forte, continuava impositivamente a reconhecer o anjo em mim, o que só pouquíssimas pessoas até hoje reconheceram, e sempre com a maior discrição. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: “Não me supervalorize, sou apenas um meio de transporte”. Enquanto que a ela nem sequer ocorreu compreender-me, eu a contragosto percebia que o argumento na verdade não me isentava: anjos também são meios de transporte. Intimidada, calei-me.
(...)
A verdade é que ser anjo estava começando a me pesar. Conheço bem esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a compreender como os anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca me ocorrera. A menos que eu fosse um anjo muito embaixo na escala dos anjos. Quem sabe, até, eu era só aprendiz de anjo. A alegria satisfeitona daquela senhora começava a me deixar sombria: ela fizera uso exorbitante de mim. Fizera de minha natureza indecisa uma profissão definida, transformara minha espontaneidade em dever, acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa altura eu já não podia mais negar, mas anjo livre.

(...)
Caí em mim e fechei a cara. Um pouco mais e teria dito àquela de quem eu era com tanta revolta o anjo da guarda: faça o obséquio de descer já e imediatamente deste táxi! Mas fiquei calada, agüentando o peso de minhas asas cada vez mais contritas pelo seu enorme embrulho. Ela, a minha protegida, continuava a falar bem de mim, ou melhor, de minha função. Emburrei. A senhora sentiu e calou-se um pouco desarvorada. Já na altura de Viveiros de Castro a hostilidade se declarara muda entre nós.
(...)

Ao saltar do táxi, assim como quem não quer nada, tive o cuidado de esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda falta de educação que me tem salvo de abismos angelicais. Livre de asas, com a grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez que só tenho quando pára de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do Edifício Visconde de Pelotas

domingo, 24 de janeiro de 2010

... acho que dessa foi mais difícil. Porque depois desse tempão que você ficou aqui, Nataloka, me sinto um pouco Cabanas, já. E vc também um pouco Neustein, né? Coisa de irmãs. Não é todo mundo que entende isso.
Fica na cabeça não só o rosto cheio de candura dos “meus avós Cabanas” , mas também a coreografia da "Maica" depois de 4 horas e meia de estrada. O jeito carinhoso que a Teresa olhou pra você na praia, várias vezes. Já fica a saudade das conversas metafísicas de sempre, aquelas que passam por Inês Pedrosa, Marieta Severo e Beyoncé. Ou você acha que essa mistureba qualquer um entende? Entende nada. Como é que a gente vai fazer, Natalinda? Voltar para os e-mails quilométricos, né? Você me contando do mundo catalão e eu te pondo a par da mesma lenga lenga de sempre. A gente vai lembrar juntas dos micos, das exposições de grafite, Cinco a seco, la tartine. O chororô de sempre. A peças conceituais: de Antunes filho a Isabelle Huppert. E as histórias? As sorayas e violeteiras. Ah Amiga, que saudade, já. Da mistura de pastelzinho de Belém e galletitas gallegas.
Me escreve contando daí. Do frio e das árvores sem folhas... Do céu anil de Barcelona e das lamparinas da Gran Via. Me conta das expressõezinhas novas que vc aprender. Ah eu vou ficar aqui, né? Na minha ponte diária Vila Madalena- bairro do limão. Vou tomar os choppinhos de final de semana e, prometo, se eu descobrir naquela biografia da Clarice mais alguma safadeza da maga-mestra, vou correndo te contar. E Nata, vou tentar equilibrar minha Hannah Arendt tupiniquim e pegar leve na hora de criticar os vaidosos de plantão. E faltou tanto, ainda... quando você voltar me leva no bazar da Lucy in the sky ? Eu dou um jeito de arranjar ingressos para um desses shows de bandas pernambucanas pra gente. ;)
E Faltou vermos a Fernanda Montenegro, amiga. Vamos?
Boa Viagem Nataloka.
Ariverdecci. ;)
Mazi

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A terapia e a terapeuta

Eu tinha só dezoito anos. Ainda não dirigia, minha vida era colégio, cursinho e teatro. Tinha paranoia com regime, lia Clarice Lispector, adorava mitologia grega e era apaixonada pelo meu vizinho que andava de bicicleta. Foi nesse estado que eu resolvi fazer terapia.
E a Beth- minha terapeuta - era exatamente o que eu imaginava de uma psicanalista: elegante, discreta, calma. Foram 7 anos. Um chororô sem fim naquele divã. E ela, lá. Me entendia. Dizia as coisas com uma delicadeza sem precedentes. Diagnosticou todas as loucurinhas da minha cabeça. E me ajudou, todos os dias, a tirar as pedrinhas dos sapatos. Ser mulher não é fácil. Mas é bonito. Ah Beth, querida.
Beth,
Estranha essa relação que fica restrita a um sofá. Eu sei que em análise a gente deve se conter, racionalizar, é como se fosse um trabalho científico. De dissecar os pensamentos, as angústias, aprender a blindar, a resolver, crescer, enfim. Para mim a terapia foi um processo profundamente revelador sem, no entanto, perder a graça de uma boa conversa. Então foi difícil ter que assumir uma postura tão "não panda"na hora de fechar esse ciclo.
Queria, sei lá, te agradecer. Por todas as segundas feiras chuvosas, pelas manhãs de quinta-feira. E também te dizer que a sua delicadeza é uma sorte. Foi bom poder chorar quando tive vontade. Foi bom saber que tudo bem. Que tudo é tudo bem. Ficar triste, ficar demasiadamente feliz, de ressaca vez ou outra, também. Tudo bem sentir vontade de não ir, ter raiva das pessoas que a gente ama. Tudo bem deixar de gostar de alguém. Ou querer muito ser aceita em algum circunstância. Obrigada Beth, por me ouvir com tanta atenção. Por prestar atenção nos textos e e-mails que eu te li, sessões atras de sessões. Por me ajudar a desvendar meus sonhos. Pelos elogios e puxões de orelha.
Obrigada por abrir meus olhos para meus exageros e mimos, tá?
beijos carinhosos.